O perdão e a guerra de Gaza

Publicado: 05 oct 2025 - 04:15

Estive a ler alguns livros sobre as características que distinguem as sociedades ocidentais das outras (entre eles, recomendo especialmente o de Joseph Henrich, As pessoas mais estranhas do mundo). Desde a forma da família até valores como o individualismo ou o sentimento de culpa retrospectivo, nós, ocidentais, temos muitas características que não são fáceis de perceber à primeira vista e que explicam muitos dos nossos éxitos e fracassos como civilização. Uma dessas características, talvez a que mais me chamou a atenção, é o perdão, que, talvez pela influência que o cristianismo teve entre nós, é um valor que damos como certo e ao qual não damos a importância que tem, ou que muitas vezes até denegrimos como uma falta de coragem ou de princípios. No entanto, este princípio desempenhou um papel fundamental na nossa evolução e é uma das chaves do relativo sucesso que alcançámos no cenário mundial.

Esta capacidade de perdoar implica que não nos envolvemos em vinganças recíprocas durante séculos com outras famílias ou estados por eventos que ocorreram, em muitas ocasiões, há séculos e que levam a espirais intermináveis de violência, que no final não conduzem a grande cousa. Pensemos nas guerras mundiais do século XX, nas quais os Estados europeus realizaram verdadeiros massacres entre seus vizinhos e causaram destruição infinita ao usar contra eles as armas mais sofisticadas conhecidas, e após as quais, em apenas vinte anos, esses povos tão belicosos já haviam se envolvido em tratados de livre comércio, como o Mercado Comum. Poucos anos depois do fim da última guerra , já havia turistas a viajar entre eles e os antigos ódios tinham-se dissipado em grande parte, dedicando as energias à construção de riqueza e conhecimento, em vez de buscar vingança. Se os instintos de vingança tivessem triunfado, ainda hoje estaríamos submetidos a uma dinámica interminável de luitas, e isso apesar de muitos territórios terem mudado de mãos e populações como as de origem alemã terem sido afastadas com violência das suas terras ancestrais,

Estas reflexões surgem na sequência do enésimo acordo de paz em Gaza. Aqui podemos ver como ambos os povos se envolveram numa dialética de guerra sem fim entre si, sem possibilidade de perdão ou reconciliação, o que leva a que seja o conflito mais longo que se conhece atualmente. A questão principal não é tanto discutir quem começou o conflito, mas sim como terminá-lo. Os defensores de cada um dos lados em conflito apresentam argumentos poderosos a seu favor, ainda que pareça evidente que, inicialmente, o conflito decorre de um mau processo de descolonização da Palestina. A seguir os israelitas iniciaram, seguindo o modelo ocidental de conquista, um processo violento de colonização do território, ampliando-o como resultado de guerras vitoriosas contra os seus vizinhos. Depois, seguiram-se mais guerras e mais vinganças que impediram um acordo pacífico. Enquanto as partes não decidirem perdoar-se e iniciar uma relação sobre novas bases, não é provável que haja paz na zona. Argumentar-se-á, com razão, que é injusto esquecer os crimes do próximo, que sem dúvida são muitos de ambos os lados, embora neste momento Israel ganhe de longe no uso da violência. Mas em algum momento, seja agora ou no futuro, será necessário acabar com esta espiral de violência. A civilização ocidental contribuiu muito a humanidade, também causou muitos danos, mas não seria mau que continuasse a contribuir com cousas boas, entre elas a cultura do perdão.

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